Feminista, Advogada e professora universitária, Salete Maria também é uma das mais importantes cordelistas do Brasil. Sua trajetória é longa e fundamental para pensarmos no papel que as mulheres têm desempenhado dentro deste cenário vasto que é a cultura popular do nosso país. No Dia Internacional da Mulher, data importante para refletirmos sobre questões de afirmação, alteridade e participação social do gênero em nossa sociedade, preparamos uma excelente entrevista com a autora.
EM – Para não perder o costume, gostaria de saber como começou o seu interesse pela Literatura de Cordel e quais são as suas principais influências.
SM – Meu interesse pela literatura de cordel é bem antigo. Vem desde a minha infância, tem a ver com a forma como fui socializada, com o contexto sócio-econômico e cultural da minha família. São múltiplas as minhas influências. Aqui eu vou destacar a principal delas: Minha avó, Dona Maria José. Foi ela quem me ensinou a gostar de cordel. Ela nasceu em Juazeiro do Norte, sul do Ceará, em 1913. Foi batizada pelo padre Cícero Romão Batista, casou-se aos 13 ou 14 anos e foi morar num sítio chamado Cana Brava dos Gregórios, no município de Granjeiro, no mesmo estado. Lá ela teve quase duas dezenas de filhos e viveu modestamente numa casinha de taipa e depois numa de tijolos. Ela era uma mulher do mato, como se definia. Gostava de tirar novenas, rezava nos “mininos duentes’’, tinha muitos afilhados e era comadre de quase todo mundo. Ela admirava muito as pessoas que sabiam ler e escrever. Era devota do Padre Cícero e costumava ir a Juazeiro para ver Frei Damião. Gostava de vestir roupas de algodão, quando podia comprar, e tinha umas anáguas lindas de morrer. Meu avô era negro, agricultor e vivia da casa pra roça. Ele sabia ler um tiquim e costumava ir à feira para comprar folhetos de novenas, carta de ABC, tabuada e cordel, que eles chamavam de “foieto”. Quando meu avô ia pra feira ele trazia o feijão, o fumo, a farinha e o foieto. Era de lei esses 4Fs. Na casa deles tinha muitos folhetos. E somente minha tia, Maria Senhora, que hoje vive em Iguatu, sabia ler e lia para as pessoas que chegassem, para meus avós e pra mim, claro, quando eu ainda não sabia ler. Essa tia era catequista e por isso gostava de juntar crianças para ensinar o catecismo e também lia folhetos para elas. Quando eu ia passar férias na casa deles, assim que eu aprendi a ler, eu era praticamente obrigada a ler folhetos todas as tardes, porque minha avó dizia que era para ela ver se eu sabia ler mesmo (risos). Ela, portanto, não sabia ler e nem escrever, mas era uma professora para mim.
Eu tomei gosto pela leitura dos folhetos por causa disso, dessa forma de sociabilidade que a gente vivia na companhia dela. Mas sempre questionei algumas histórias, inclusive as de reis, de soldados, de generais, etc. Vale destacar que eu nasci em São Paulo, fruto do êxodo rural, mas sempre ia pro Ceará e, quando voltava, levava cordéis comigo. Um dia meus pais foram definitivamente morar no Ceará. Aí sim eu passei frequentar a casa de meus avós com assiduidade. Desde criança eu sempre rabiscava poesias, fiz poesias de toda sorte, inclusive folhetos. Até hoje minha mãe guarda uns rabiscos meus na casa dela…porém, somente em 1994, quando Olga, minha única filha, nasceu, publiquei meu primeiro folheto, no formato de Cordel mesmo. Trata-se do folheto Mulher Consciência: nem violência nem opressão, considerado, pelas estudiosas, o primeiro cordel feminista do Brasil. Segundo Claudia Rejanne, doutora em letras e docente de uma universidade pública no Ceará, meu primeiro folheto foi uma poesia que eu publiquei num jornal do DCE da URCA, não sei exatamente em que ano. Ela diz que era um Cordel, no caso meu primeiro Cordel, na concepção dela, cujo título era “Desabafafo Acadêmico Matuto”, que tinha a seguinte frase como mote: “esse curso de direito só vai me desmantelar.” Mas eu não acho que aquilo era um Cordel. Eu não digo que ele foi meu primeiro Cordel. Sei lá, não sou pesquisadora de Cordel, para mim era uma poesia rimada, só isso. Meu primeiro folheto publicado mesmo foi esse que falei acima, em 1994, portanto, há 22 anos. Bom, voltando a minha inspiração. Minha avó não somente me apresentou muitos folhetos – os clássicos, sobretudo -, como ela me inspirou na escrita de muitos. Como eu disse, ela nunca aprendeu a ler ou escrever, mas foi uma grande poetisa, ela inventava estrofes, ela varria o terreiro recitando coisas. Ela também tinha de memória todos os folhetos que eram lidos para ela. Ela guardava tudo na memória. Mas quando ela fazia as rimas dela mesma, ela metia as rimas dos outros pelo meio. Ela começava com algo dela e intertextualizava com os clássicos. Ela brincava, ela inventava…de forma que eu nunca sabia quando algo era completamente dela. Mas hoje eu penso que nada é completamente de ninguém, afinal, como diz o Legião, “quais são as palavras que nunca foram ditas”, né? Bem, na velhice ela ficou cega e aí eu não somente passei a ler mais para ela, como passei a gravar o que ela dizia, pois fiz entrevistas com ela quando ela já tinha entre 85 e 90 anos…ela morreu em 2003. Eu gravei em fita K7 muitas falas dela e pretendo usar isso num diálogo teatral, em algum momento da vida…não eram entrevistas com um fim especifico, era porque minha avó sempre me encantou, sempre foi uma estrela, uma artista…ver ela recitando era fantástico, ela era performática….as entrevistas que fiz com ela já foram analisadas por professoras brasileiras e estrangeiras, como Fanka (UFCA) e Ria Lemaire (França)… Bem, basta eu dizer que minha avó amava Literatura de Cordel. E eu amava minha avó e passei a amar Literatura de Cordel também. Ela foi a primeira cordelista que conheci na vida. Ela nunca publicou nada, mas o filho dela sim, o poeta Zé Alexandre, que mora em Juazeiro, e esteve abrilhantando minha festa de 20 anos de Cordel… Eu narro essa história da influência de minha avó na minha poesia no cordel intitulado “Cordelirando”, assim como no cordel intitulado Feminismo em cordel, como foi que começou?
EM – Além de advogada, você é professora e pesquisadora. Porque resolveu escrever literatura popular?
SM – Olha só, costumo dizer que sou uma feminista cordelista, professora, pesquisadora e advogada, necessariamente nesta ordem (risos)… Mas deixa eu contextualizar essa coisa toda para que você possa entender melhor essa minha ‘opção’ pela literatura popular… Além do que já destaquei na pergunta anterior, sobre minha infância entre folhetos e recitais, sobre a influência de minha avó na minha vida, como a primeira cordelista que conheci, vale dizer que nasci numa periferia paulista, filha de pessoas que tinham cordéis em casa. Meus pais são pessoas com pouca escolaridade. Sempre trabalharam em atividades de pouco prestígio social e baixíssima remuneração. Pessoas de parcas leituras, no sentido tradicional dessa palavra. Morei em favela. Desde cedo aprendi a questionar desigualdades. Me envolvi com partidos de esquerda, com sindicatos, com movimentos estudantis, movimentos de mulheres e, posteriormente, com o movimento LGBTT, tendo ajudando, desde muito jovem, a construir ações e fazer intervenções tanto em Sampa como no Cariri cearense, para onde fui em definitivo no ano de 1986. No Ceará, trabalhando como comerciária, depois como fotógrafa, depois como professora e estudando muito, inclusive autodidaticamente, já militando no PCdoB, firmei-me como feminista marxista e sempre desenvolvi uma luta no interior e na fronteira dos partidos políticos. Li muito e atuei muito, questionado hierarquias, práticas e discursos excludentes. Aprendi muito com companheiros e companheiras de jornadas, com quem fiz amizades que são conservadas e cultivas até hoje. Costumo dizer que o feminismo no Cariri, enquanto movimento e pensamento político e cultural, nasceu e se desenvolveu a partir das militantes socialistas que nunca dissociaram a luta contra a exploração capitalista da luta contra a violência de gênero e a exclusão social, econômica e política das mulheres. Assim, em conjunto com outras companheiras, sempre tentamos colocar as questões das mulheres na ordem do dia, buscando politizar o 8 de março que, em regra, era tomado como um momento de condecoração das mulheres da elite caririense. Eu narro isto no cordel Mulheres invisíveis de Juazeiro, onde questiono esta postura dos poderes constituídos e apresento “outras” mulheres como protagonistas da luta social e da história desta região. Falo das mulheres simples do povo, mulheres anônimas, mulheres que não estavam presentes no livro “Mulheres de Juazeiro”, do escritor cearense Raimundo Alencar, por exemplo. Sempre atuei muito fortemente com relação a estas coisas. E meu/nosso feminismo estava também dentro de todas as demais lutas que travávamos. Participei de grupos de mulheres de bairro, na luta em prol de saneamento, em prol da saúde pública. Participei muito dos programas de rádio tentando contribuir para a desconstrução do “ideal de mulher” que estava/está presente na visão androcêntrica de mundo. Falava de feminismo, de direitos humanos das mulheres e da necessidade de se articular a luta contra o patriarcado, racismo e capitalismo. Posteriormente, já como advogada, sempre acompanhei mulheres e homossexuais vítimas de violência. Fiquei 9 anos dando assistência jurídica gratuita a população de uma pequena cidade chamada Caririaçu, especialmente às mulheres daquele município que não tinham condições de pagar advogados e sequer tinha defensores públicos a época. Além disto, as candidaturas a vereadora, prefeita e governadora visaram colocar na agenda pública, na ordem do dia, este debate tão importante numa época em que esta temática não estava em evidência. Tudo isso eu colocava para circular através do cordel. O meu primeiro cordel mostra tudo isto. Eu o fiz após o assassinato da filha de uma vizinha que em muito se assemelhava a outros que aconteciam na região e noutros lugares. E fiquei muito feliz ao perceber o seu uso em oficinas, palestras e em salas de aulas no período do 8 de março. Toda essa vivência influenciou a produção dos meus folhetos. Ser uma das pioneiras das lutas políticas e feministas no Cariri, ajudar a fundar duas ONGs gays nesta região, assessorar juridicamente mulheres e homossexuais. Ser candidata e me apresentar como tal, dar palestras e criar “constrangimentos pedagógicos” sobre estas opressões todas foi algo que sempre esteve ao lado de uma profícua produção de cordel acerca destes temas. O cordel Mulheres do Cariri: mortes e perseguição é um cordel que traz isto muito bem, o cordel Cidadania, nome de mulher, idem. O cordel O que é ser mulher? de igual modo. E tantos e tantos outros. Um cordel intitulado Habeas Bocas, Companheiras, foi feito para convocar as advogas do Cariri a também perceberam as discriminações e violações de que eram/são alvo. Cordéis como Mulheres Fazem e Mulher-Cariri Cariri-Mulher, tratam do protagonismo e do empoderamento das mulheres. Assim como o cordel Lugar de Mulher. A participação nestes movimentos influenciou meu versejar e meus folhetos também influenciaram os movimentos, conforme já ouvi falar. Basta ler os cordéis que fiz sobre a ocupação da URCA, quando o governador não quis nomear o reitor eleito. Ainda no campo da questão das mulheres, no combate ao sexismo, o cordel O Caso Eliza Samudio e o Machismo Total também revela esta questão, assim como Embalando meninas em tempos de violência e Basta de Feminicidio!, além do cordel Maria de Araújo e seu Lugar na História ou a Beata Beat Cult. Além de todos os cordéis que tratam das temáticas e questões LGBTT, que são muitos e estão no blog Cordelirando e no livro, mas tem alguns que ainda precisam ser colocados lá. Graças a Sammyra Santana muitos dos folhetos, quase todos, estão na rede mundial dos computadores para quem quiser acessar. O meu propósito sempre foi esse, socializar. A temática das mulheres não é algo que eu abracei para vender folhetos, mas é algo que decorre de uma luta da qual eu sempre participei. Ademais, como neta de uma mulher que amava cordéis, que me ensinou a amar também, socializo minha produção para que outras mulheres possam acessar, sem qualquer custo e refletir sobre sua condição social, visando a transformação do status quo. Explico isto na entrevista que dei ao Coletivo Camaradas, pois em Juazeiro, durante muitos anos, somente cordéis, em sua maioria machistas, circulavam nas feiras e faziam sucesso entre pesquisadores/as. E tinha gente que ganhava dinheiro disseminando discurso de ódio nos folhetos. Basta ler a tese de Claudia Rejane para perceber isso.
A nossa atitude, embora eu as vezes penasse muito para publicar um folheto, não era ganhar dinheiro com isto, pois como se tratava de uma militância, de um compromisso, eu escrevia e presenteava muitas mulheres no meu bairro e no Cariri como um todo e mandava, via correios, para amigas de vários lugares. Infelizmente, nesta época ainda não tinha a internet…ou pelo menos eu não tinha acesso a ela. Alguns cordelistas tinham raiva disso, ou seja, do fato de eu fazer folheto para contribuir com as lutas e não para ganhar dinheiro ou atender a pedidos e encomendas de políticos, notadamente da direita, como tantos faziam e creio que ainda fazem. Isso me entristecia e eu percebia que algumas pessoas, mesmo vivendo no meio dessa literatura, não dava valor a isso…Tem muita gente que ao citar os grandes poetas do Cariri ou os cordéis mais interessantes, nunca citava/cita nada produzido por nós, por mim. Mas isto decorre do preconceito com a escrita feminina e também do não reconhecimento da nossa contribuição. Vejo isto com pesar, pois é importante conhecer a história, a trajetória e o esforço das pessoas que em épocas distantes deram o primeiro passo, semearam a semente….Enfim, o meu folheto tinha e tem esse compromisso com a luta social. Na verdade, eu nunca separei o poético do político. Dizem que meus folhetos inauguraram uma nova forma de construir rimas, mas minha felicidade era ver as pessoas lendo, dramatizando, recitando…sou muito agradecida aos artistas do Cariri que fizeram peças, filmes e declamações baseados no meu trabalho. Vale destacar que também tratei de pessoas com deficiência, pessoas idosas (O que é a velhice? e o outro intitulado A história de Zé leitor), trouxe a questão do racismo, questionei os paradigmas jurídicos, até petição em cordel eu fiz e estão nos anais do Fórum em Caririaçu. Sammyra Santana colocou uma dessas petições no blog. O centro da minha poética são os cordéis feministas e libertários, mas sempre falei de direitos humanos nos meus folhetos. Vide o cordel sobre assédio moral, vide o cordel condenando a violência que Gilvan Luiz, um jornalista cearense, sofreu, etc. De todos os humanos, enfatizo as humanas historicamente discriminadas, excluídas e silenciadas. Vide meu cordel intitulado Direitos Humanos, isto é fundamental, publicado em 2006.
EM – Como é fazer Literatura de Cordel num ambiente predominantemente masculino?
SM – No campo da literatura de cordel, assim como em outros campos, inclusive da chamada “grande literatura”, o androcentrismo e o sexismo ainda é uma constante, ainda constitui o discurso hegemônico. Eu aprecio muito a qualidade das rimas de muitos poetas homens. Aprecio sua resistência e dedicação para manter viva a cultura popular, manter vivo o folheto de cordel. No Ceará, na Bahia e em outros estados tem vários poetas de cordel que merecem nosso respeito, nossa consideração. Eu falo com sinceridade, há muita pérola, muita riqueza nessas rimas todas, mas também destaco os preconceitos presentes em muitos folhetos. Mas isso não é ‘privilégio’ dos poetas de cordel. Os grandes clássicos da literatura estão recheados disto, afinal, estamos imersos numa cultura ainda fortemente marcada pela predominância masculina nos espaços de produção, circulação e consumo dos folhetos e de outros gêneros literários. Mas existem cordelistas mulheres aos montes furando essa bolha, mudando essa realidade, paulatinamente. Precisamos de auto-organização, de mais reflexão sobre esta realidade. Precisamos colocar na ordem do dia este debate. Por outro lado, tem também a questão da classe social, dos preconceitos ou descaso para com esta literatura que não ganha o mesmo status que outras produções, seja no mundo acadêmico, seja no sistema de ensino, seja nos salões e eventos relacionados à literatura, seja nas mídias, seja no circuito editorial. Sempre destaco que as editoras, sobretudo as ditas grandes editoras, quando não ignoram a literatura de cordel, tratam de divulgar apenas a produção masculina, a exemplo de uma antologia publicada pela editora Hedra, que traz os 50 poetas populares de norte a sul e não contempla uma única cordelista mulher. São cinquenta livros contendo folhetos de vários poetas, apresentados por pesquisadoras e pesquisadores de alto nível no campo da literatura. Mas, apesar da qualidade do material, da importância, inclusive histórica, da antologia, apesar da excelente contribuição que a mesma dá para a visibilidade do folheto no Brasil, a “cegueira de gênero” é o que caracteriza a antologia, infelizmente.
Visando problematizar esta realidade rica, complexa e contraditória do mundo dos folhetos, eu e outras/os poetas caririenses organizamos e lançamos a Sociedade dos Cordelistas Mauditos, com “u” mesmo. Esta Sociedade foi criada no ano 2000, em Juazeiro do Norte-Ce, por iniciativa da poetiza e pesquisadora Fanka Santos, do cantor, cantador e poeta de cordel Helio Ferraz, do poeta Hamurabi Batista e de outras pessoas, dentre elas euzinha. Tratava-se de um grupo, de um movimento, de uma aliança informal de poetas que veio enriquecer ainda mais a já rica cultura cariri, que de tão diversa, de tão múltipla, de tão cara, de tão nobre tornava se a cada dia mais interessante aos olhos dos de dentro e dos de fora daquele “locus cultural’’. Surgimos em plena “comemoração” dos 500 anos do Brasil, e apresentamos uma proposta inovadora, problematizadora sobre arte, sobre literatura, sobre cordel. Desde cedo propusemos um diálogo do cordel com outras manifestações culturais. E dizem que a diferença entre os Mauditos e os ditos tradicionais se dava tanto na forma quanto no conteúdo. E é verdade. Na forma, inovamos com o papel, com a capa, que além da xilogravura, também usava colagens, desenhos, fotos, etc. Às vezes ilustrávamos até as folhas internas do cordel. No conteúdo, procurávamos trazer uma abordagem crítica, denunciativa, propositiva, problematizadora e emancipatória, com questões que os cordéis tradicionais tratavam e tratam e mantendo o status quo. Evidenciamos, de maneira coletiva, a questão da violência contra a mulher, do discurso homofóbico, machista, racista, sexista presente em muitos dos clássicos da literatura de cordel. Falamos sobre temas os mais variados e demos visibilidade a acontecimentos, pessoas e relações sociais não tratadas até então por este tipo de arte. Atualmente, os Mauditos estão, enquanto grupo, meio dispersos, pois os cordelistas precisam trabalhar para sobreviver…Eis a prova da existencial social e política do poeta…De vez em quando algum de nós se comunica com o outro, em geral para dar notícias de um novo cordel que tá produzindo…Hélio e Soneca já me mandaram textos maravilhosos que produziram neste período em que somente temos nos falado pela internet…Mesmo assim, por onde passo gosto de destacar nossa Sociedade e o valor do trabalho do grupo e de cada um. Sempre coloco em relevo a importâncias da poesia dos colegas, dos Poetas Hélio Ferraz, Fanka, Soneca, Batata, Orivaldo, Nicodemos, Paulo, enfim, dos ditos mauditos do Cariri, que, na minha opinião, são realmente muito bons. Logicamente que de tão mauditos temos divergências entre nós, mas isto faz parte da proposta de sociedade. Nos últimos tempos parece que quem mais tem publicado sou eu, e tenho procurado manter este espírito de poesia social e crítica que marca o nosso grupo e o meu próprio trabalho desde antes da Sociedade. Em 2000 divulgamos manifesto que dizia mais ou menos assim: “A nossa comunicação se dá através da poesia de cordel, traço da nossa identidade nordestina. Odiamos tecnicistas sem sentimentos literários. Somos contra o lugar comum da globalização que cria signos massificantes e uniformiza o comportamento estético. Nosso movimento pretende, sob uma ótica intertextual, utilizando vários códigos estéticos, redimensionar a literatura de cordel para um campo onde todas as linguagens sejam possíveis. Não somos nem erudito nem popular, somos linguagens. Entramos na obra porque ela está aberta e é plural. Somos poeta e guerreiros do amanhã. A poesia escreverá, enfim, a verdadeira história. Viva Patativa do Assaré e Oswald de Andrade.” Estamos revendo e relendo algumas questões. Para o ano 2010 estava previsto um encontro para pensar os 10 anos da Sociedade…mas não houve. Gostaria de dizer que, na verdade, não foi exatamente a gente que se apresentou como os “diferentes”, foram os “iguais” que nos acusaram de não saber fazer cordel, de trair o cordel tradicional, estas coisas… Muitos sustentaram até que nós não fazíamos literatura de cordel porque nós estávamos quebrando dogmas, tabus do cordel. Mas este discurso já era tão previsível que não nos importamos com isto. Quanto à importância do movimento eu digo que este ainda não foi suficientemente compreendido, nem pelos membros, nem pelos apreciadores, nem pelos depreciadores, enfim. Falta pesquisa, falta pesquisa para entender isto… aliás, aproveito a entrevista para sugerir aos estudantes e aos estudiosos do campo da literatura e das políticas culturais que procure entender isto, pelamordedeus… Violeta Arraes, ex-reitora da Universidade Regional do Cariri, esteve presente no lançamento dos Mauditos no ano 2000, e disse-me, certa vez o seguinte: “este movimento de vocês vai dar panos para as mangas”… Espero que ela, como uma grande carpinteira da cultura que foi esteja certa… De qualquer modo, os Mauditos já são citados e estudados por alguns pesquisadores de instituições de fora do Cariri. Eu acredito que foi uma grande experiência, e dou um grande Viva para os Mauditos do Juá.
EM – Você se intitula uma cordelista feminista brasileira. O que veio antes? O Cordel ou o feminismo?
SM – Na verdade, como eu disse na entrevista para o Coletivo Camaradas, o feminismo e outros movimentos/pensamentos surgem na minha escrita não como tema, mas como um reflexo de minha vida, de minha militância, pois minha existência, meu lugar social está no campo dos sub-representados, das ditas minorias sociais, uma vez que sempre participei das lutas pelo reconhecimento de certos sujeitos e de seus direitos. Minha arte, portanto, desde que tenho consciência do meu lugar e do meu papel social, sempre foi assumidamente militante, participante, e eu não apenas tenho a coragem de assumir esta, para muitos, incômoda posição como tenho orgulho de me colocar desta maneira, malgrado o alto preço que se paga por adotar esta postura. Mas isto não é algo que faz parte do meu show, é o elemento central dele. A respeito disto, concordo com Gorki, quando diz que o escritor “não pode ser uma simples testemunha contemplativa dos acontecimentos de sua época.” Com efeito, não sou mais um escriba de velhos conceitos e preconceitos que os registra, insípida e imparcialmente, ao longo da vida. Assim como Drummond, constato que “são tão fortes as coisas, mas eu não sou as coisas e me revolto!”. Sou uma escritora das revoltas, uma revoltada na melhor e mais política acepção desta palavra. Escrevo para provocar reflexão, revolta, pensamentos, conhecimentos, para, quem sabe, ajudar a mudar as coisas. Werneck Sodré nos ensinou que as artes não são feitas apenas para o deleite, o ócio, o prazer. E eu reconheço que estas são possibilidades e aspectos importantes das artes. Mas a arte também é um processo de conhecimento, tão rico e tão importante quanto qualquer outro. Por isto não nego o caráter social e transformador do fenômeno literário. Eu escrevo profundamente (ins)pirada, mobilizada por aquilo que vivo, que experimento, individual, coletiva e, sobretudo, socialmente no meu tempo e no meu lugar de existência…E o Cariri, durante uma época, foi o meu lugar de lutas, onde eu também retratei, poeticamente, as minorias sociais orando, laborando, pelejando e construindo sua história. Se você observar, a quase totalidade de meus cordéis tem como palco, como cenário, o Cariri cearense. Mas desde que vim morar na Bahia, em 2007, também ambiento meus folhetos por aqui.
EM – A internet tem sido importante para a visibilidade de pautas relacionadas a gênero e feminismo, assim como das divergências em torno desses temas. Qual a importância desse universo virtual para a sua arte/militância?
SM – É fundamental. O cyberfeminismo que o diga. A rede mundial dos computadores encurta distâncias, possibilita diálogos, articulações, aproximações. É certo que também causa desconfortos, inconveniências, distorções. Mas tem importância fundamental na disseminação de ideias libertárias, de produções científicas, artísticas, culturais. Quando Sammyra criou o blog Cordelirando, visando inserir minha poética para que o mundo todo pudesse ler, achei o máximo. Ela percebeu que meus cordéis estavam esparsos, soltos por aí. E tinha muitos deles que nem eu mesma tinha mais um exemplar, pois eu costumo dar para as pessoas, presentear os movimentos, as mulheres de luta, enfim. Então criou o blog e passou a alimentá-lo, como uma cordelteca virtual, como um repositório onde minha obra fica guardadinha, disponível para quem quiser ler, consultar e usar. E lá nós não colocamos apenas trechos não, os cordéis estão na íntegra, pois esta é uma atitude coerente com o nosso objetivo, qual seja, compartilhar, disseminar ideias, contribuir com as reflexões em torno da igualdade de gênero, do combate às opressões, etc. Através do universo virtual muita gente chegou até nós. Pesquisadoras/es do Brasil todo começaram a investigar nosso trabalho, a refletir sobre ele. Existem mais de dez trabalhos, entre teses, dissertações e monografias, dedicados a analisar nossa obra ou que fazem referência a ela como algo digno de análise, de discussão, de divulgação. Somos muito gratas por isto.
EM – Como você avalia o país, atualmente, principalmente no que tange às políticas públicas voltadas para as mulheres?
SM – O país está uma tristeza total, sobretudo para as mulheres e, mais particularmente para as mulheres populares e diversas. Costumo dizer que estamos sendo golpeadas quase que diariamente. E não somente pelos homens, dentro e fora dos nossos lares, mas pelo governo através de suas políticas neoliberais que restringem direitos, que atacam conquistas históricas, como a própria Secretaria de Políticas para as Mulheres, a SPM, que foi transformada numa pequena dispensa, após a fusão com outros ministérios. Trata-se de uma atitude que evidencia o lugar e importância das temáticas femininas para um governo que, em princípio, falava da importância da ampliação da cidadania feminina, do respeito aos direitos das mulheres, do combate à violência. As políticas neoliberais do governo Dilma não somente estão restringindo direitos sociais – como por exemplo a saúde, a educação, mas direitos trabalhistas e previdenciários, afetando sobremaneira as mulheres das camadas pobres da sociedade e incrementando o fenômeno da feminização da pobreza, tão amplamente estudado e questionado pelos feminismos. Eu lamento tudo isto, mas percebo que era previsível, haja vista as opções adotadas, as alianças políticas com grupos políticos e econômicos que historicamente estiveram de costas para as mulheres, para suas necessidades e especificidades. É deplorável que o ministro da saúde seja alguém que fala abertamente contra os interesses das mulheres, notadamente as negras e pobres. É lamentável que a ministra da reforma agrária seja uma latifundiária, uma legítima representando do agronegócio, além de outros ministros e ministérios que pouco ou nada se preocupam com as nossas demandas. O quadro atual leva a menos direitos para as mulheres, menos recursos para nossas pautas, menos políticas e menos poder para todas nós. Associado a isto, temos um parlamento extremamente conservador, constituído por vozes sexistas, racistas, homofóbicas, que, quando convém, aprovam as medidas provisórias propostas pelo governo Dilma para prejudicar a classe que vive do trabalho, como as 664 e 665, que já foram transformadas em lei. Um parlamento que inviabiliza o funcionamento do país, mas que não abre mão de seus privilégios, que, por razões de classe, mantém interesses e vantagens intocáveis, tais como as benesses dos deputados e senadores, dentre os quais muitos são de esquerda mas também não abrem mão de um centavo nesta época de crise, quando todos se unem para justificar os cortes nos direitos, as restrições de acesso a bens e serviços tão necessários a toda a sociedade. Tivemos um período de ganho, de conquistas, todas decorrentes das lutas das mulheres, da pressão dos feminismos, mas, atualmente, estamos num crescente de perdas, passamos por uma fase de retrocessos históricos, golpes duros nas nossas conquistas, nas nossas vitórias obtidas a duras penas, sobretudo no pós-constituinte. E o pior: falar sobre isto é algo que causa um mal-estar nas pessoas. E eu vejo que as mentes críticas já não são tão críticas assim. Discutir os retrocessos nos direitos das mulheres virou um tema tabu, dentro e fora da Universidade. Será que somente a poesia ou a arte de um modo geral nos salvará nessas horas? Ou, como diria Caetano: “será que apenas os hermetismos pascoais/ Os toms, os miltons, seus sons e seus dons geniais / Nos salvam, nos salvarão dessas trevas e nada mais?” Eu penso que a literatura de cordel, crítica, engajada, ousada, abusada e feminista também pode nos salvar, nos alertar, nos alentar. Eu acho.
EM – Gostaria de deixar uma mensagem final?
SM – Gostaria de gradecer imensamente pela oportunidade, pela consideração para com minha/nossa poética e por este momento. Gratidão ao Universo por este encontro, ainda que virtual. Finalizo com algumas estrofes do cordel intitulado “Lugar de Mulher”, disponível na íntegra no nosso blog Cordelirando:
Na janela dum sobrado
Daqui donde me defronto
Com meu presente e passado
Fico metendo a colher
Do ‘meu lugar de mulher’
Neste mundão desgarrado
Do meu ângulo obtuso
Num canto da camarinha
Afrouxo um parafuso
Liberto uma andorinha
Desmancho uma estrutura
Arranco uma fechadura
Desmonto uma ladainha
Reza a história do mundo
Que mulher tem seu lugar
É um discurso ‘corcundo’
E prenhe de bla-bla-blá
Eu que ando em toda parte
Divulgo através da arte
Outro modo de pensar:
Lugar de mulher é quarto
Sala, bodega e avião
Lugar de mulher é mato
Cidade, praia e sertão
Lugar de mulher é zona
Do Estado do Arizona
À Vitória de Santo Antão
P.S: Para quem tiver interesse em visitar ou para quem quiser usar em atividades, eventos, roda de conversa e recitais, dentro e fora das instituições de ensino, a página virtual da autora é:
cordelirando.blogspot.com.br
Minha homenagem à mulher:
Mesmo a inveja do diabo
Estragando-lhe a beleza
Afeta somente o corpo
Mas não sua realeza
Porque o Deus de bondade
Fez dela a extremidade
Da obra da natureza
Petró.´. Telefone: 83 8872-0813 (oi) 83 9900-1830 (tim)
Date: Tue, 8 Mar 2016 12:08:27 +0000 To: petronilofilho@hotmail.com
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